Escrito
por José Castello
“Sempre me aborrece quando as pessoas esperam de mim uma grande
precisão, como se eu fosse Angus Wilson ou Jean-Paul Sartre ou Borges, alguém
com uma grande capacidade crítica. Eu não a tenho; tenho intuições”. Encontro
esta corajosa declaração de Julio Cortázar no verbete “Crítica”, de Cortázar
de A a Z, livro organizado por Aurora Bernárdez e Carlos Garriga para a
Alfaguara, de Madrid. Nela se realça a importância de algo que os escritores de
hoje, em geral cheios de si, costumam desprezar: a intuição. Posso avançar mais
um pouco: nela se afirma o papel da ignorância na literatura.
Modestamente, e um pouco envergonhado, eu tomo emprestadas as palavras
de Julio Cortázar. Sempre que o porteiro me entrega uma correspondência
dirigida ao “crítico” José Castello, sinto calafrios. Meu primeiro impulso é o
de devolvê-la, como se não me pertencesse. Cortázar me ajuda a ver que, de
certo modo, ela não me pertence mesmo. Ao escrever sobre literatura — como
agora mesmo eu faço —, trabalho muito mais com a intuição do que com a teoria.
Muito mais com o que não sei do que com o que sei. E não tenho vergonha alguma
em dizer isso.
Reconheço a importância dos conceitos, mas não sou um homem feito para
eles. Sou disperso demais, bastante irracional, impulsivo em excesso para
merecer a classificação honrosa de crítico literário. Tudo o que faço é
dialogar, com palavras simples, diretas, às vezes até irrefletidas, com o que
leio. Clarice dizia: “Não sou eu quem escrevo, são os livros que me escrevem”.
Posso me arriscar, aqui também, a imitá-la: “Não sou eu quem leio, são os
livros que me leem”.
Às vezes, me dizem: “Você é intuitivo demais. Vá mais devagar, pense
mais um pouco”. Gostaria de ser assim, mas não sou. E por isso me espantam
tanto os escritores que escrevem agarrados à sua técnica — seja ela
“intelectual”, ou simplesmente uma técnica “de mercado”. Creio francamente que
mesmo os escritores mais metódicos não têm muito controle sobre suas palavras.
Esforçam-se, concentram-se, empenham-se, mas algo — que está além deles, embora
esteja sempre dentro deles — os arrasta. Algo os submete e comanda.
Busco novas pistas para sustentar o que digo nas palavras que roubo de
Cortázar. Há algo de aleatório e gratuito em toda escrita e também em toda
leitura. Algo de impulsivo — que não se pode controlar e que exige a
experiência do vazio, ou da atração pelo nada. No mesmo livro, encontro um trecho
de uma entrevista de Cortázar a Sara Castro-Klaren que me ajuda a pensar.
Depois de lembrar que não consegue ouvir música enquanto lê, o escritor
argentino diz que prefere ler enquanto espera seu voo em um aeroporto, ou a um
amigo em um café, “porque esses são os vazios, os tempos ocos que o sujeito não
procurou por si mesmo, mas os horários a que a vida te condena”. Intervalos,
momentos em que a atenção flutua e o espírito se distende, podendo então tomar
posse plena de si mesmo e entregar-se ao imprevisível. Também para escrever,
creio, o escritor necessita de certa flutuação — navegação cega no espaço do
desconhecido —, ou as palavras não lhe chegam.
Um escritor (um leitor) não trabalha com aquilo que sabe, mas com aquilo
que não sabe. Soubesse, e não escreveria. Justamente por isso não compartilho
da ideia de que o escritor é um intelectual — embora seja com as palavras e as
ideias que ele, de fato, lida. Como um intelectual, um escritor trabalha com
pensamentos; só que, em vez de dominá-los, se deixa atropelar por eles. Ele se
permite o inesperado e até mesmo a derrota. Derrota de que? Derrota do saber
organizado, do pré-existente, do canônico. Derrota de todos esses saberes que,
em vez de empurrar um escritor, emperram seu caminho. “Tenho que aprender a
ver, ainda não sei”, resumiu Cortázar em uma carta a Maria Rocchi, do ano de
1952. “Sigo olhando, olhando, não me cansarei nunca de olhar”, escreve, no ano
seguinte, a Eduardo Jonquières. Cabe ao escritor uma atitude de espera e,
sobretudo, de entrega. Estar disponível para o imprevisto, deixar-se envolver
pelo que ignora para só então encontrar algumas palavras que prestem.
Talvez por isso, um dos grandes vícios de Cortázar fosse dar longas
caminhadas sem destino, pelas ruas de Buenos Aires ou de Paris. Passear, andar
sem rumo, perder-se. “É impossível dizê-lo com palavras: nesse estado em que
avanço como um pouco perdido, como em uma distração que me leva a observar os
letreiros, os cartazes dos bares, a gente que passa e estabelecer todo o tempo
relações que compõem frases, fragmentos de pensamentos, de sentimentos, tudo
isso cria um sistema de constelações mentais”. São essas constelações mentais,
prossegue Cortázar, “que determinam uma linguagem que não posso explicar com
palavras”. Escrever é lidar com experiências que estão muito além de qualquer
explicação. É viver intuitivamente. São momentos em que o pensamento crítico se
retrai, cedendo espaço ao fortuito e à surpresa. Momentos em que o escritor faz
contato com sua ignorância — em que ele tira partido dela. A ignorância se
torna, então, um espaço vazio no qual o novo pode, enfim, se instalar.
Em A volta ao dia em oitenta mundos, Julio Cortázar nos fala
de um sentimento infantil e persistente: a consciência “de não estar
completamente”. Algo que ele encontra nas crianças e que persiste dentro de si
mesmo. Trata-se do sentimento de “não estar de todo em quaisquer das estruturas
e das telas que a vida nos arma”, ele explica. Numa palavra mais direta, que
ele encontra logo depois: o sentimento de excentricidade, no qual “entre viver
e escrever não se estabelece nunca uma clara diferença”. A vida arrasta a
escrita, mas a escrita, do mesmo modo, injeta na vida sua potência. Nesse jogo
de dupla direção, o escritor ocupa um lugar “entre” — entre o mundo e a
palavra. O lugar de simples intermediário. Território vacilante e incoerente.
“Escrevo por não estar, ou por estar apenas em parte. Escrevo por falência, por
deslocamento”, nos diz Cortázar. Empurrado pelo acaso, espremido por forças que
não controla, o escritor avança sobre o que desconhece. E desse desconhecido se
alimenta.